sábado, 27 de março de 2010

Ao alcance da mão

Livraria da Travessa
Foto: Paulo Batelli



O livro deve estar ao alcance da mão, quando não está em nossa memória.

O convívio com o livro é um hábito que se renova a cada página,

como se ler fosse muito fácil e assim se torne à medida que lemos.

Ler aos poucos cria fôlego para se ler mais,

até não saber quanto se consegue devorar com os olhos.

Tudo é minuciosamente escrutinado,

à procura de sinais, baixos-relevos,

inscrições apenas palpáveis, adivinhadas entrelinhas.

Ler algo que nos soa correto, descortina um novo horizonte.

Olhamos detidamente para o que descobrimos.

É inaugurado um novo princípio

e passamos à leitura seguinte mais sábios e mais ávidos.

Livros podem ser olhados ao acaso,

como se folheássemos algo que não nos pertence,

mas subitamente pode passar a fazer parte de nós.

E, uma vez que desvendemos esse segredo, jamais o perdemos,

porém, só o compartilhamos com quem também já o desvendou.

O hábito da leitura tem de se instalar aos poucos.

Nada aos saltos perdura.

Para fazer sempre é preciso constância, passos lentos para se ir mais longe.

Ler apenas o que nos agrada, acostumar o olho à página,

até que se aprenda a suportar qualquer texto e saber recusar um só ao vê-lo de relance.

Não devemos nos forçar à leitura.

A leitura não prazerosa se torna automática. Nada fica.

Impossível reter qualquer palavra.

Ler durante o tempo que se tolera, imerso no texto,

como um peixe – nadar até ficar exausto.

Tentar ler o que nunca se pensou gostar.

Inaugurar novos caminhos.

Cada leitura conduz a um destino não planejado.

E ao alcançá-lo, acreditar que não havia melhor lugar para se estar.

O livro é feito não apenas para os olhos, mas para o tato.

Tocá-lo faz parte da leitura.

Saber que o que emana dele recende a jasmim ou sândalo.

Deixamo-nos seduzir pelos sentidos.

Um livro é sempre um objeto de toque.

O olho percebe o que as mãos já sabem.

E, ao saborear as palavras, sente-se repleto.



Rio de Janeiro, 21 de março de 2010 – 15h27

domingo, 14 de março de 2010

José Mindlin (1914-2010)


José Mindlin mostrando um exemplar do livro
"Grande Sertão: Veredas" em plena revisão.
Segundo Mindlin, as anotações foram feitas
pelo próprio Guimarães Rosa.

Foto: © Copyright Penna Prearo
Todos os direitos reservados.
Foto feita em maio de 2002

sábado, 13 de março de 2010

O espírito dos livros

José Mindlin, imortal e bibliófilo, falecido há duas semanas, deixou-nos um legado perene: perpetuar os livros, pois, para ele, "os livros não desaparecerão jamais". Já outro bibliófilo, semiólogo e escritor italiano, Umberto Eco, os 30.000 livros de sua biblioteca são "os que ainda irá ler, senão, por que os guardaria?"

Piadas à parte, a verdade é que os livros cumprem um destino insólito: de preservar tudo o que o homem imaginou. Sem eles, nada saberíamos sobre egípcios e sumérios, babilônios e gregos, isso para citar os mais antigos, pois desde a invenção da imprensa, popularizaram-se as publicações de tal forma que praticamente todos podem realizar o sonho de publicar um livro.

Hoje, então, nem se fala. Gutenberg fez pelo livro o mesmo que Graham Bell pela comunicação virtual: acelerou os processos de tal forma que não imaginamos mais viver sem eles. As gráficas hoje tentam acompanhar a produção sob demanda. Além do papel reciclado, temos o papel de garrafa pet, o papel de plástico, que não dobra nem amassa. Quando pensamos nos primeiros livros impressos, temos a sensação de estar diante de um milagre.

Outro aspecto me chama a atenção: a sina da perseguição. Livros já foram proibidos, queimados, banidos, indexados, destruídos e, claro, lidos às escondidas. Há um temor e um assombro em relação a eles, seja pelo que trazem ou pelo que nos revelam. Ler um livro ilumina.

Por tudo isso, todos que um dia colaboraram em relação aos livros, seja criando bibliotecas, contrabandeando-os, guardando-os em lugar seguro, salvando-os de um incêndio ou de uma enchente, são dignos de um prêmio. O exemplo de Midlin deve multiplicar-se, o de Eco, proliferar-se, todos deveríamos ter 30.000 livros ainda por ler.

Meus pais sempre foram bibliófilos. Sempre tinham um livro sendo lido. Antes de morrer, papai estava lendo "As Novelas Exemplares", de Miguel de Cervantes. Mindlin também dizia que ao encontrarmos um livro, nunca devemos negligenciá-lo, ele pode não estar mais lá quando voltarmos para buscá-lo. É o encontro de uma vida.

Um dos depoimentos mais fantásticos que ouvi foi o de um contista, Mariel Reis, ao dizer que crescera numa casa sem luz, e que se refugiava na biblioteca do bairro durante o dia para poder ler. Ali podia encontrar todos os autores que queria: aquele era o seu paraíso. Ele escreve como poucos autores contemporâneos que conheço. É de tirar o fôlego. A literatura salvou-o.

Ainda menina, aos dez anos, li uma crônica de Cecília Meireles e foi a primeira vez que vi o que estava escrito: chamava-se "A arte de ser feliz" e ela descrevia a pomba que pousava num globo de louça azul que, por vezes, ficava da mesma cor do céu e assim a pomba parecia estar pousada no ar... Estava fazendo uma leitura silenciosa durante a aula no quarto ano primário do Chapeuzinho Vermelho, levantei a cabeça... e vi a pomba no ar!

O que um livro contém só faz sentido para quem o lê. Esse é o espírito do livro, que vive em nós depois que o lemos, que continua falando conosco muito tempo depois de tê-lo perdido em alguma mudança ou de uma separação. A biblioteca semovente que nos acompanha são os livros que guardamos, os que damos de presente, os que perdemos, os que esquecemos e só reencontramos nos sebos.

Ontem, na TV, um homem anunciava que alguém havia jogado na lata de lixo em Nova York uma primeira edição de "Alice no País das Maravilhas", encadernado em couro vermelho, com bordas douradas, que valia quinze mil dólares! Quem o encontrou, guardou-o num cofre. Esta edição só não vale mais do que a feita pelo próprio Lewis Carroll para presentear a Alice Liddell.

Além do sentido para quem o lê, há para quem ouve falar do livro - por quanto tempo procuramos um livro que queremos ler? Às vezes, uma vida inteira. E ao encontrá-lo, novamente volto a Mindlin, é como se encontrássemos um velho amigo que perdemos de vista há muito tempo.

Esta missão, a de guardar, a de escrever, a de publicar, a de vender livros, é a das mais sagradas, pois livros são sagrados pelo que contêm. Uma grande livraria brasileira começou com uma senhora que emprestava os livros que havia trazido da Europa ao fugir da guerra. Outra começou com um rapaz que veio trabalhar em uma que fecharia uma semana depois e para não deixá-la cerrar as portas, "tocou o negócio". Há muitas que já fecharam depois de viverem seu período áureo. Mas sempre voltam, em outro lugar.

O espírito dos livros sempre pairou sobre as águas. E criou, à sua imagem e semelhança, os livros que lemos.

Rio de Janeiro, 13 de março de 2010 - 18h20

quarta-feira, 10 de março de 2010

Livro é um ser vivo

Estava eu posta em sossego sábado à noite, quando me liga Pedro Lago, desesperado:
- Já mandou o arquivo do livro para a gráfica?
Eu respondi:
- Sim, claro.
- Ih, encontrei outro erro.
- Onde?
- Na citação de Balzac. Tem um R a mais numa palavra e nós não vimos...
- Esse é um erro fácil de passar, depois de tantos que já pegamos...

O livro passou por três provas de gráfica, fora as duas antes de mandarmos os arquivos para impressão. Mas não adianta: quantos mais erros houver no original, mais tempo levaremos para pegar todos, isto é, se quisermos pegar todos. Pois o olho não funciona como instrumento de precisão. O olho é vago. Ele vê o que quer e o que ele não quer ver, descarta. Oblitera. Sublima.
Assim, toda revisão tem de ser feita de modo regular, periódico, sistemático e, se possível, por quem nunca tenha visto o texto antes.

- Como você encontrou o erro?
- Pedi a meu amigo para ler a citação em voz alta e aí ele viu que estava errado.
Eu disse:
- Pois é, você acabou de experienciar o livro dizendo para você onde ainda havia um erro. De onde tirou a ideia de pedir para ler justamente a citação?
- Sei lá.
- É assim mesmo. O livro só consegue nos fazer enxergar os erros que passaram ao acaso, não tem outro jeito, pois nossa leitura é sempre falha. A não ser que tenhamos todo o tempo do mundo. Mas queremos ver o livro pronto, por isso não temos paciência para revisar.
- Entendi...

Pedro acabara de viver na pele como isso acontece. Pode ser que algum outro errinho ainda tenha escapado. Nas sucessivas leituras que fizemos, eu e ele, sempre encontrávamos algo a mais que não tínhamos visto antes. E este (negligenciado por justamente estar logo na frente, e isso é comum) não poderia passar. Desse modo, de forma sutil, o livro indicou onde estava o erro, pedindo: "Leia-me."

Liguei imediatamente para Elô, a dona da gráfica, em Blumenau, no celular, e perguntei se o miolo já havia sido impresso. Por sorte, ela me disse que não. Então, pedi que esperasse até eu mandar a página, na segunda-feira, trocando a citação onde o autor encontrara um erro na última hora. O livro foi salvo pelo gongo. Se tivesse sido impresso, teríamos de mandar reimprimir aquele caderno. Isso pode acontecer, mas não foi necessário desta vez. Sorte nossa e sorte do livro (como se ele não soubesse...)

Hoje topei com uma citação de Anaïs Nin: "Lemos aquilo que precisamos. Há quase uma força obscura que nos guia para determinado livro".

Isso eu experimento toda vez que entro numa livraria. O livro me "chama", seja lá onde ele estiver na prateleira. Realmente, é uma força estranha que entra em ação, me chamando para o livro onde ele está, embaixo de um, ao lado de outro. Meu olhar busca o livro onde ele estiver escondido, e só pára no momento em que o encontra.

É uma mágica que se instala na atração irresistível de um livro chamando seu leitor: "Leia-me", da mesma forma que ele pede para ser corrigido antes de ficar pronto. É um apelo, um grito, uma dor, como se dissesse: "Corrija-me, por favor".

O antes e o depois de um livro ficar pronto cria uma energia elástica, uma sintonia plástica entre aquele que faz o livro e quem o compra para ler. Existe uma tensão entre aquilo que foi escrito e quem precisa lê-lo. E todas as forças entram em ação para que o objeto atinja seu destino e encontre seu leitor.

"Lemos o que precisamos". Nem mais, nem menos. Se não sabe o que ler, espere: o livro o encontrará.

Rio de Janeiro, 10 de março de 2010 - 22h10

De Betina Kopp:

AMEI!!!!

De Flávio Machado:

Realmente interessante essa colocação ou constatação do livro como um ser vivo, muito bom o artigo.

De Renata Pallottini:

Lido, pensado, é mesmo!
Um abraço, Renata

De Mano Melo:

Adoro suas crônicas sobre edição. Você enxerga como uma cientista.

Beijos,
Mano

De Antonio Torres:

Tô repassando, Thereza Christina.

Bjs,

AT

De Andrea Milanez:

Curioso, você ter me mandado este texto pois ontem fiquei na internet lendo anais nin e separei um texto que não tenho certeza se é poesia ou prosa poética para levar pro Ponte de Versos, acho que tivemos a mesma ideia...Outra curiosidade, a pouco mandei um texto falando de como compro livros e é exatamente como voce descreveu. Jung chama isso de sincronicidade, pois coincidências para ele não existem. Estamos em sintonia.
bjs
Dede

De Claudia Abreu Campo:

Boa, Thereza!

De Álvaro Alves de Faria:

querida thereza:
dá para fazer um livro com essas histórias.
pense nisso.
beijo,
álvaro

De Pedro Lago:

Nossa, que repercussão! Fiquei honrado, sério mesmo.
Não preciso dizer que esse livro tem que ser feito, será muito interessante.