quarta-feira, 10 de março de 2010

Livro é um ser vivo

Estava eu posta em sossego sábado à noite, quando me liga Pedro Lago, desesperado:
- Já mandou o arquivo do livro para a gráfica?
Eu respondi:
- Sim, claro.
- Ih, encontrei outro erro.
- Onde?
- Na citação de Balzac. Tem um R a mais numa palavra e nós não vimos...
- Esse é um erro fácil de passar, depois de tantos que já pegamos...

O livro passou por três provas de gráfica, fora as duas antes de mandarmos os arquivos para impressão. Mas não adianta: quantos mais erros houver no original, mais tempo levaremos para pegar todos, isto é, se quisermos pegar todos. Pois o olho não funciona como instrumento de precisão. O olho é vago. Ele vê o que quer e o que ele não quer ver, descarta. Oblitera. Sublima.
Assim, toda revisão tem de ser feita de modo regular, periódico, sistemático e, se possível, por quem nunca tenha visto o texto antes.

- Como você encontrou o erro?
- Pedi a meu amigo para ler a citação em voz alta e aí ele viu que estava errado.
Eu disse:
- Pois é, você acabou de experienciar o livro dizendo para você onde ainda havia um erro. De onde tirou a ideia de pedir para ler justamente a citação?
- Sei lá.
- É assim mesmo. O livro só consegue nos fazer enxergar os erros que passaram ao acaso, não tem outro jeito, pois nossa leitura é sempre falha. A não ser que tenhamos todo o tempo do mundo. Mas queremos ver o livro pronto, por isso não temos paciência para revisar.
- Entendi...

Pedro acabara de viver na pele como isso acontece. Pode ser que algum outro errinho ainda tenha escapado. Nas sucessivas leituras que fizemos, eu e ele, sempre encontrávamos algo a mais que não tínhamos visto antes. E este (negligenciado por justamente estar logo na frente, e isso é comum) não poderia passar. Desse modo, de forma sutil, o livro indicou onde estava o erro, pedindo: "Leia-me."

Liguei imediatamente para Elô, a dona da gráfica, em Blumenau, no celular, e perguntei se o miolo já havia sido impresso. Por sorte, ela me disse que não. Então, pedi que esperasse até eu mandar a página, na segunda-feira, trocando a citação onde o autor encontrara um erro na última hora. O livro foi salvo pelo gongo. Se tivesse sido impresso, teríamos de mandar reimprimir aquele caderno. Isso pode acontecer, mas não foi necessário desta vez. Sorte nossa e sorte do livro (como se ele não soubesse...)

Hoje topei com uma citação de Anaïs Nin: "Lemos aquilo que precisamos. Há quase uma força obscura que nos guia para determinado livro".

Isso eu experimento toda vez que entro numa livraria. O livro me "chama", seja lá onde ele estiver na prateleira. Realmente, é uma força estranha que entra em ação, me chamando para o livro onde ele está, embaixo de um, ao lado de outro. Meu olhar busca o livro onde ele estiver escondido, e só pára no momento em que o encontra.

É uma mágica que se instala na atração irresistível de um livro chamando seu leitor: "Leia-me", da mesma forma que ele pede para ser corrigido antes de ficar pronto. É um apelo, um grito, uma dor, como se dissesse: "Corrija-me, por favor".

O antes e o depois de um livro ficar pronto cria uma energia elástica, uma sintonia plástica entre aquele que faz o livro e quem o compra para ler. Existe uma tensão entre aquilo que foi escrito e quem precisa lê-lo. E todas as forças entram em ação para que o objeto atinja seu destino e encontre seu leitor.

"Lemos o que precisamos". Nem mais, nem menos. Se não sabe o que ler, espere: o livro o encontrará.

Rio de Janeiro, 10 de março de 2010 - 22h10

De Betina Kopp:

AMEI!!!!

De Flávio Machado:

Realmente interessante essa colocação ou constatação do livro como um ser vivo, muito bom o artigo.

De Renata Pallottini:

Lido, pensado, é mesmo!
Um abraço, Renata

De Mano Melo:

Adoro suas crônicas sobre edição. Você enxerga como uma cientista.

Beijos,
Mano

De Antonio Torres:

Tô repassando, Thereza Christina.

Bjs,

AT

De Andrea Milanez:

Curioso, você ter me mandado este texto pois ontem fiquei na internet lendo anais nin e separei um texto que não tenho certeza se é poesia ou prosa poética para levar pro Ponte de Versos, acho que tivemos a mesma ideia...Outra curiosidade, a pouco mandei um texto falando de como compro livros e é exatamente como voce descreveu. Jung chama isso de sincronicidade, pois coincidências para ele não existem. Estamos em sintonia.
bjs
Dede

De Claudia Abreu Campo:

Boa, Thereza!

De Álvaro Alves de Faria:

querida thereza:
dá para fazer um livro com essas histórias.
pense nisso.
beijo,
álvaro

De Pedro Lago:

Nossa, que repercussão! Fiquei honrado, sério mesmo.
Não preciso dizer que esse livro tem que ser feito, será muito interessante.

4 comentários:

  1. Recebi essa reflexão no boletim da LIBRE e fiquei curiosa com a autora. :)
    Muito bom, Thereza.

    Beijinhos carinhosos

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  2. É verdade, Thereza. Lembro quando aconteceu algo semelhante na revisão do meu. A diferença é que tivemos muito mais tempo. Beijos.

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  3. Fabiana,
    todo livro passa por um processo semelhante, no seu corrigimos o erro, no dele também, mas tivemos de pegar no laço, mandando esperar a impressão. Como diz um amigo, é emoção o tempo todo!
    Beijos.

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  4. Elida, obrigada por ceder à sua curiosidade. Assim pôde conhecer os outros textos que tenho escrito sobre o mesmo tema.
    Beijos.

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