sábado, 13 de março de 2010

O espírito dos livros

José Mindlin, imortal e bibliófilo, falecido há duas semanas, deixou-nos um legado perene: perpetuar os livros, pois, para ele, "os livros não desaparecerão jamais". Já outro bibliófilo, semiólogo e escritor italiano, Umberto Eco, os 30.000 livros de sua biblioteca são "os que ainda irá ler, senão, por que os guardaria?"

Piadas à parte, a verdade é que os livros cumprem um destino insólito: de preservar tudo o que o homem imaginou. Sem eles, nada saberíamos sobre egípcios e sumérios, babilônios e gregos, isso para citar os mais antigos, pois desde a invenção da imprensa, popularizaram-se as publicações de tal forma que praticamente todos podem realizar o sonho de publicar um livro.

Hoje, então, nem se fala. Gutenberg fez pelo livro o mesmo que Graham Bell pela comunicação virtual: acelerou os processos de tal forma que não imaginamos mais viver sem eles. As gráficas hoje tentam acompanhar a produção sob demanda. Além do papel reciclado, temos o papel de garrafa pet, o papel de plástico, que não dobra nem amassa. Quando pensamos nos primeiros livros impressos, temos a sensação de estar diante de um milagre.

Outro aspecto me chama a atenção: a sina da perseguição. Livros já foram proibidos, queimados, banidos, indexados, destruídos e, claro, lidos às escondidas. Há um temor e um assombro em relação a eles, seja pelo que trazem ou pelo que nos revelam. Ler um livro ilumina.

Por tudo isso, todos que um dia colaboraram em relação aos livros, seja criando bibliotecas, contrabandeando-os, guardando-os em lugar seguro, salvando-os de um incêndio ou de uma enchente, são dignos de um prêmio. O exemplo de Midlin deve multiplicar-se, o de Eco, proliferar-se, todos deveríamos ter 30.000 livros ainda por ler.

Meus pais sempre foram bibliófilos. Sempre tinham um livro sendo lido. Antes de morrer, papai estava lendo "As Novelas Exemplares", de Miguel de Cervantes. Mindlin também dizia que ao encontrarmos um livro, nunca devemos negligenciá-lo, ele pode não estar mais lá quando voltarmos para buscá-lo. É o encontro de uma vida.

Um dos depoimentos mais fantásticos que ouvi foi o de um contista, Mariel Reis, ao dizer que crescera numa casa sem luz, e que se refugiava na biblioteca do bairro durante o dia para poder ler. Ali podia encontrar todos os autores que queria: aquele era o seu paraíso. Ele escreve como poucos autores contemporâneos que conheço. É de tirar o fôlego. A literatura salvou-o.

Ainda menina, aos dez anos, li uma crônica de Cecília Meireles e foi a primeira vez que vi o que estava escrito: chamava-se "A arte de ser feliz" e ela descrevia a pomba que pousava num globo de louça azul que, por vezes, ficava da mesma cor do céu e assim a pomba parecia estar pousada no ar... Estava fazendo uma leitura silenciosa durante a aula no quarto ano primário do Chapeuzinho Vermelho, levantei a cabeça... e vi a pomba no ar!

O que um livro contém só faz sentido para quem o lê. Esse é o espírito do livro, que vive em nós depois que o lemos, que continua falando conosco muito tempo depois de tê-lo perdido em alguma mudança ou de uma separação. A biblioteca semovente que nos acompanha são os livros que guardamos, os que damos de presente, os que perdemos, os que esquecemos e só reencontramos nos sebos.

Ontem, na TV, um homem anunciava que alguém havia jogado na lata de lixo em Nova York uma primeira edição de "Alice no País das Maravilhas", encadernado em couro vermelho, com bordas douradas, que valia quinze mil dólares! Quem o encontrou, guardou-o num cofre. Esta edição só não vale mais do que a feita pelo próprio Lewis Carroll para presentear a Alice Liddell.

Além do sentido para quem o lê, há para quem ouve falar do livro - por quanto tempo procuramos um livro que queremos ler? Às vezes, uma vida inteira. E ao encontrá-lo, novamente volto a Mindlin, é como se encontrássemos um velho amigo que perdemos de vista há muito tempo.

Esta missão, a de guardar, a de escrever, a de publicar, a de vender livros, é a das mais sagradas, pois livros são sagrados pelo que contêm. Uma grande livraria brasileira começou com uma senhora que emprestava os livros que havia trazido da Europa ao fugir da guerra. Outra começou com um rapaz que veio trabalhar em uma que fecharia uma semana depois e para não deixá-la cerrar as portas, "tocou o negócio". Há muitas que já fecharam depois de viverem seu período áureo. Mas sempre voltam, em outro lugar.

O espírito dos livros sempre pairou sobre as águas. E criou, à sua imagem e semelhança, os livros que lemos.

Rio de Janeiro, 13 de março de 2010 - 18h20

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