Crônicas editoriais publicadas num primeiro volume chamado "A vida dos livros" (Ibis Libris, 2010), narrando as experiências como editora de jornal e livros desde 1978.
segunda-feira, 26 de abril de 2010
Os 10 Mandamentos do Revisor
1- Pela coerência dos tempos de verbo, velarás
2- Palavras e expressões repetidas, evitarás
3- Pronomes possessivos, economizarás
4- Adjetivos em excesso, caçarás
5- O emprego da crase, finalmente aprenderás
6- Um bom dicionário, sempre consultarás
7- Sinais de pontuação, bem empregarás
8- As novas regras ortográficas, enfim conhecerás
9- Leituras infindáveis, constantemente farás
10- Uma paciência de Jó, armazenarás
Contribuição de uma contista aplicada, Consuelo Marinho-Rouquette que lançará seu segundo livro de contos "Comida & Tristeza" dia 31 de maio na Travessa do Leblon a partir das 19h
Livros de uma vida inteira
A cada dia, um novo livro assoma à nossa porta, para nos dizer aquilo que queremos saber, e numa ciranda de ideias armazenadas, bem acondicionadas em páginas que se seguem, uma à outra, perfeitamente encaixadas. Não pretendemos saber tudo, nem de longe, nem um dia. Mas nos dá uma imensa alegria pensar que um saberemos mais, ao encontrar um livro de surpresa, ou aquele que tanto buscamos.
O melhor livro é o que nos completa, o que nos empresta as palavras certas, nos diz o que estávamos esperando ouvir (ou ler). E a partir da novidade dita, poderemos compartilhá-la, duplicá-la, transmiti-la, copiá-la, repensá-la, tudo numa fração de segundos. A vida passa mais devagar quando pensamos. Dá tempo de refletir sobre tudo. Detemo-nos diante de um poema como se tocássemos a pedra filosofal. Aquela que tem o condão de transformar tudo em ouro.
São de ouro as nossas ideias, os nossos pensamentos, tudo o que aprendemos a fazer, tudo o que podemos ensinar, compartir, dividir, doar. A vida se presta aos préstimos. Àquilo que emprestamos de nós, em cada palavra que dizemos.
Aprender novas palavras: eis o desafio do homem. Aprender a dizê-las, aprender a usá-las, aprender a ensinar a dizê-las, com seu significado e sentido, com seu peso e matéria. Palavras para tudo o que somos e pretendemos saber.
E o único repositório das palavras (além das cartas bem escritas e dos diários e jornais abandonados) são os livros que colecionamos a vida inteira, esses portais de sabedoria que carregamos por toda a parte, e abrimos como quem procura um tesouro e sabe que vai encontrá-lo.
Rio de Janeiro, 27 de abril de 2010 - 02h02
quinta-feira, 1 de abril de 2010
Assim como as pessoas, os livros nascem
sábado, 27 de março de 2010
Ao alcance da mão

Foto: Paulo Batelli
O livro deve estar ao alcance da mão, quando não está em nossa memória.
O convívio com o livro é um hábito que se renova a cada página,
como se ler fosse muito fácil e assim se torne à medida que lemos.
Ler aos poucos cria fôlego para se ler mais,
até não saber quanto se consegue devorar com os olhos.
Tudo é minuciosamente escrutinado,
à procura de sinais, baixos-relevos,
inscrições apenas palpáveis, adivinhadas entrelinhas.
Ler algo que nos soa correto, descortina um novo horizonte.
Olhamos detidamente para o que descobrimos.
É inaugurado um novo princípio
e passamos à leitura seguinte mais sábios e mais ávidos.
Livros podem ser olhados ao acaso,
como se folheássemos algo que não nos pertence,
mas subitamente pode passar a fazer parte de nós.
E, uma vez que desvendemos esse segredo, jamais o perdemos,
porém, só o compartilhamos com quem também já o desvendou.
O hábito da leitura tem de se instalar aos poucos.
Nada aos saltos perdura.
Para fazer sempre é preciso constância, passos lentos para se ir mais longe.
Ler apenas o que nos agrada, acostumar o olho à página,
até que se aprenda a suportar qualquer texto e saber recusar um só ao vê-lo de relance.
Não devemos nos forçar à leitura.
A leitura não prazerosa se torna automática. Nada fica.
Impossível reter qualquer palavra.
Ler durante o tempo que se tolera, imerso no texto,
como um peixe – nadar até ficar exausto.
Tentar ler o que nunca se pensou gostar.
Inaugurar novos caminhos.
Cada leitura conduz a um destino não planejado.
E ao alcançá-lo, acreditar que não havia melhor lugar para se estar.
O livro é feito não apenas para os olhos, mas para o tato.
Tocá-lo faz parte da leitura.
Saber que o que emana dele recende a jasmim ou sândalo.
Deixamo-nos seduzir pelos sentidos.
Um livro é sempre um objeto de toque.
O olho percebe o que as mãos já sabem.
E, ao saborear as palavras, sente-se repleto.
Rio de Janeiro, 21 de março de 2010 – 15h27
domingo, 21 de março de 2010
domingo, 14 de março de 2010
José Mindlin (1914-2010)
sábado, 13 de março de 2010
O espírito dos livros
Piadas à parte, a verdade é que os livros cumprem um destino insólito: de preservar tudo o que o homem imaginou. Sem eles, nada saberíamos sobre egípcios e sumérios, babilônios e gregos, isso para citar os mais antigos, pois desde a invenção da imprensa, popularizaram-se as publicações de tal forma que praticamente todos podem realizar o sonho de publicar um livro.
Hoje, então, nem se fala. Gutenberg fez pelo livro o mesmo que Graham Bell pela comunicação virtual: acelerou os processos de tal forma que não imaginamos mais viver sem eles. As gráficas hoje tentam acompanhar a produção sob demanda. Além do papel reciclado, temos o papel de garrafa pet, o papel de plástico, que não dobra nem amassa. Quando pensamos nos primeiros livros impressos, temos a sensação de estar diante de um milagre.
Outro aspecto me chama a atenção: a sina da perseguição. Livros já foram proibidos, queimados, banidos, indexados, destruídos e, claro, lidos às escondidas. Há um temor e um assombro em relação a eles, seja pelo que trazem ou pelo que nos revelam. Ler um livro ilumina.
Por tudo isso, todos que um dia colaboraram em relação aos livros, seja criando bibliotecas, contrabandeando-os, guardando-os em lugar seguro, salvando-os de um incêndio ou de uma enchente, são dignos de um prêmio. O exemplo de Midlin deve multiplicar-se, o de Eco, proliferar-se, todos deveríamos ter 30.000 livros ainda por ler.
Meus pais sempre foram bibliófilos. Sempre tinham um livro sendo lido. Antes de morrer, papai estava lendo "As Novelas Exemplares", de Miguel de Cervantes. Mindlin também dizia que ao encontrarmos um livro, nunca devemos negligenciá-lo, ele pode não estar mais lá quando voltarmos para buscá-lo. É o encontro de uma vida.
Um dos depoimentos mais fantásticos que ouvi foi o de um contista, Mariel Reis, ao dizer que crescera numa casa sem luz, e que se refugiava na biblioteca do bairro durante o dia para poder ler. Ali podia encontrar todos os autores que queria: aquele era o seu paraíso. Ele escreve como poucos autores contemporâneos que conheço. É de tirar o fôlego. A literatura salvou-o.
Ainda menina, aos dez anos, li uma crônica de Cecília Meireles e foi a primeira vez que vi o que estava escrito: chamava-se "A arte de ser feliz" e ela descrevia a pomba que pousava num globo de louça azul que, por vezes, ficava da mesma cor do céu e assim a pomba parecia estar pousada no ar... Estava fazendo uma leitura silenciosa durante a aula no quarto ano primário do Chapeuzinho Vermelho, levantei a cabeça... e vi a pomba no ar!
O que um livro contém só faz sentido para quem o lê. Esse é o espírito do livro, que vive em nós depois que o lemos, que continua falando conosco muito tempo depois de tê-lo perdido em alguma mudança ou de uma separação. A biblioteca semovente que nos acompanha são os livros que guardamos, os que damos de presente, os que perdemos, os que esquecemos e só reencontramos nos sebos.
Ontem, na TV, um homem anunciava que alguém havia jogado na lata de lixo em Nova York uma primeira edição de "Alice no País das Maravilhas", encadernado em couro vermelho, com bordas douradas, que valia quinze mil dólares! Quem o encontrou, guardou-o num cofre. Esta edição só não vale mais do que a feita pelo próprio Lewis Carroll para presentear a Alice Liddell.
Além do sentido para quem o lê, há para quem ouve falar do livro - por quanto tempo procuramos um livro que queremos ler? Às vezes, uma vida inteira. E ao encontrá-lo, novamente volto a Mindlin, é como se encontrássemos um velho amigo que perdemos de vista há muito tempo.
Esta missão, a de guardar, a de escrever, a de publicar, a de vender livros, é a das mais sagradas, pois livros são sagrados pelo que contêm. Uma grande livraria brasileira começou com uma senhora que emprestava os livros que havia trazido da Europa ao fugir da guerra. Outra começou com um rapaz que veio trabalhar em uma que fecharia uma semana depois e para não deixá-la cerrar as portas, "tocou o negócio". Há muitas que já fecharam depois de viverem seu período áureo. Mas sempre voltam, em outro lugar.
O espírito dos livros sempre pairou sobre as águas. E criou, à sua imagem e semelhança, os livros que lemos.
Rio de Janeiro, 13 de março de 2010 - 18h20