sábado, 7 de março de 2015

O esquecimento dos autores brasileiros

Aos dez anos, li, maravilhada, a crônica de Cecília Meireles, "A arte de ser feliz", em que vi, mentalmente, pela primeira vez, algo descrito por palavras. Uma pomba sobre um globo de louça azul que, às vezes, tomava a cor céu e parecia pousar no ar. Eu vi a pomba pousada no ar! A partir daquele momento, não fui mais a mesma. Iniciava assim a leitura de autores brasileiros que estavam à minha mão. Aos 12, fiz o papel de Nossa Senhora em "O Auto da Compadecida", de Ariano Suassuna, em classe, a pedido da professa Lucy Ramos, que foi aluna de Cleonice Berardinelli. 

Os professores de português e literatura na época eram bastante generosos e líamos a grande literatura brasileira: Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Autran Dourado, Lygia Fagundes Telles, José Lins do Rego, Luís Jardim, Viriato Corrêa, Machado de Assis, José de Alencar, José Mauro de Vasconcellos, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Ignacio De Loyola Brandão, Marcos Rey, Mario Prata, Odylo Costa, filho, Paulo Leminski, Hilda Hilst, Olga Savary, Nélida Piñon e tantos outros que figuravam nas antologias de contos e poesia que tínhamos à nossa disposição. Líamos literatura nacional e aprendíamos a escrever com eles. Foi o livro de Clarice, "Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres", que li aos 15 anos, que me fez decidir ser poeta e começar a guardar meus poemas para publicá-los um dia. 

O que aconteceu depois? A literatura brasileira foi abandonada e sucateada em edições esgotadas e deixou de ser ensinada na escola, substituída por novos autores ou livros estrangeiros traduzidos e nunca mais os alunos puderam ler o que se escrevia no Brasil, só o que era traduzido em best-sellers. Os conceitos deixaram de ser nossos e passaram a usar parâmetros americanos ou europeus sem o devido distanciamento. Hoje os novos autores escrevem sobre vampiros, anjos, demônios, bruxos, reis, magos e as heroínas moram nos EUA ou na Inglaterra, mesmo que o assunto pudesse acontecer aqui. Abandonaram os temas brasileiros e a dicção se tornou estrangeira, além dos inevitáveis erros em português. Abandonaram nossa língua e não conhecem mais a gramática e os verbos. Falam de ETs, do Egito Antigo, do Oriente Médio, mas o que é brasileiro não existe mais na literatura nacional. 

Falta ler os nossos próprios autores. Eles não figuram mais na lista dos mais vendidos como há 30 anos. Só livros que absolutamente não nos interessam. Quem quer saber só de 50 Tons de Cinza? E este está no topo da lista. Vende, porque é fácil de ler. É feito para vender. Mas não é literatura. É comestível. Deglutível. Facilmente digerível e dispensável. Não faz pensar. Não faz refletir. Só interessa o imediatismo do sexo. Por mais que o sexo tenha estado presente na literatura de todos os tempos, falta identidade linguística. Os conceitos não são nossos. A língua original não é nossa, portanto, nem a forma de falar sobre esse assunto. O texto escrito em português, em bom português, difere de qualquer tradução, porque, por melhor que seja, é uma tradução, não um original em português, e por isso os novos autores escrevem tão mal sobre assuntos que não conhecem, ou os estudam no lugar de outros mais próximos de nós. 

A literatura é universal. Um russo falará da miséria da mesma forma que um brasileiro, porque a miséria é comum a qualquer país, mas a língua é outra. Não adianta transpor uma experiência sem ter vivido a própria experiência. Por isso autores brasileiros são mais importantes que os estrangeiros, por melhores que estes sejam. Eles falam e escrevem em nossa língua, estudada em todo mundo como algo excepcional, só nós não aproveitamos tanto quanto eles. Ler autores brasileiros é fundamental para escrever bem em português. Sem eles, os novos textos serão espúrios. Sem vocabulário, sem estrutura gramatical, sem identidade nacional. Emprestado a nós para esquecermos nossa própria língua.
7/02/2015 - 15h03
Ariano Suassuna (1927-2014)


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