terça-feira, 25 de agosto de 2015

As surpresas do livro

Eu deveria estar habituada, mas não há como me habituar com surpresas. Se tivéssemos previsão de tudo que vamos fazer, não haveria emoção alguma em fazê-lo. O que os distingue é a novidade. O que não sabemos como irá acontecer. Se começo algo sabendo exatamente como vai terminar, que graça tem? Posso desejar que termine bem, mas isso não me garante o resultado. O passo a passo é que me faz acreditar que estou no caminho certo. A surpresa é inerente. Nada termina como começou, nem nenhum livro sai como entrou. Ele sofre um processo de transmutação entre ideia e realização. Quando me veem com um livro "pronto", eu sempre aviso que ele poderá mudar, não porque eu queira, mas porque o próprio livro quer. É o livro que pede a mudança. Quando entrei naquela livraria para esperar o horário do cinema, não esperava que eu fosse ser puxada pela manga para olhar uma publicação que tinha uma palavra que eu precisava consertar no livro que estava revisando. Toda vez que erramos numa revisão, em seguida, vem o conserto através de outro livro, de uma matéria no jornal ou notícia na TV, ou até numa conversa ao acaso, ou placa de rua. É o acaso que faz com que percebamos os erros. Tudo é muito sutil, não dá para explicar por que acontece assim, apenas que acontece. Já me vi tantas vezes enredada em revisões que não sei como vão acabar (mas que acabam), que só quando estou com o produto final nas mãos eu sei que consegui terminá-lo. Quando me trazem um livro "pronto", eu digo: "Não é assim que se faz". O livro faz a si mesmo, e nos refaz junto com ele. Eu tenho que descobrir o que o livro quer, porque como todo ser novo, ele quer toda a atenção que merece.

25/08/2015 - 12h15


sábado, 7 de março de 2015

O esquecimento dos autores brasileiros

Aos dez anos, li, maravilhada, a crônica de Cecília Meireles, "A arte de ser feliz", em que vi, mentalmente, pela primeira vez, algo descrito por palavras. Uma pomba sobre um globo de louça azul que, às vezes, tomava a cor céu e parecia pousar no ar. Eu vi a pomba pousada no ar! A partir daquele momento, não fui mais a mesma. Iniciava assim a leitura de autores brasileiros que estavam à minha mão. Aos 12, fiz o papel de Nossa Senhora em "O Auto da Compadecida", de Ariano Suassuna, em classe, a pedido da professa Lucy Ramos, que foi aluna de Cleonice Berardinelli. 

Os professores de português e literatura na época eram bastante generosos e líamos a grande literatura brasileira: Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Autran Dourado, Lygia Fagundes Telles, José Lins do Rego, Luís Jardim, Viriato Corrêa, Machado de Assis, José de Alencar, José Mauro de Vasconcellos, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Ignacio De Loyola Brandão, Marcos Rey, Mario Prata, Odylo Costa, filho, Paulo Leminski, Hilda Hilst, Olga Savary, Nélida Piñon e tantos outros que figuravam nas antologias de contos e poesia que tínhamos à nossa disposição. Líamos literatura nacional e aprendíamos a escrever com eles. Foi o livro de Clarice, "Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres", que li aos 15 anos, que me fez decidir ser poeta e começar a guardar meus poemas para publicá-los um dia. 

O que aconteceu depois? A literatura brasileira foi abandonada e sucateada em edições esgotadas e deixou de ser ensinada na escola, substituída por novos autores ou livros estrangeiros traduzidos e nunca mais os alunos puderam ler o que se escrevia no Brasil, só o que era traduzido em best-sellers. Os conceitos deixaram de ser nossos e passaram a usar parâmetros americanos ou europeus sem o devido distanciamento. Hoje os novos autores escrevem sobre vampiros, anjos, demônios, bruxos, reis, magos e as heroínas moram nos EUA ou na Inglaterra, mesmo que o assunto pudesse acontecer aqui. Abandonaram os temas brasileiros e a dicção se tornou estrangeira, além dos inevitáveis erros em português. Abandonaram nossa língua e não conhecem mais a gramática e os verbos. Falam de ETs, do Egito Antigo, do Oriente Médio, mas o que é brasileiro não existe mais na literatura nacional. 

Falta ler os nossos próprios autores. Eles não figuram mais na lista dos mais vendidos como há 30 anos. Só livros que absolutamente não nos interessam. Quem quer saber só de 50 Tons de Cinza? E este está no topo da lista. Vende, porque é fácil de ler. É feito para vender. Mas não é literatura. É comestível. Deglutível. Facilmente digerível e dispensável. Não faz pensar. Não faz refletir. Só interessa o imediatismo do sexo. Por mais que o sexo tenha estado presente na literatura de todos os tempos, falta identidade linguística. Os conceitos não são nossos. A língua original não é nossa, portanto, nem a forma de falar sobre esse assunto. O texto escrito em português, em bom português, difere de qualquer tradução, porque, por melhor que seja, é uma tradução, não um original em português, e por isso os novos autores escrevem tão mal sobre assuntos que não conhecem, ou os estudam no lugar de outros mais próximos de nós. 

A literatura é universal. Um russo falará da miséria da mesma forma que um brasileiro, porque a miséria é comum a qualquer país, mas a língua é outra. Não adianta transpor uma experiência sem ter vivido a própria experiência. Por isso autores brasileiros são mais importantes que os estrangeiros, por melhores que estes sejam. Eles falam e escrevem em nossa língua, estudada em todo mundo como algo excepcional, só nós não aproveitamos tanto quanto eles. Ler autores brasileiros é fundamental para escrever bem em português. Sem eles, os novos textos serão espúrios. Sem vocabulário, sem estrutura gramatical, sem identidade nacional. Emprestado a nós para esquecermos nossa própria língua.
7/02/2015 - 15h03
Ariano Suassuna (1927-2014)


sexta-feira, 6 de março de 2015

Um livro é permanente

A maior satisfação de se fazer um livro é vê-lo se "construindo". A partir do texto inicial, ir montando, passo a passo, a capa, a apresentação, o texto das orelhas, da contracapa, as fotos, e ver se o conjunto ficará bem, e verificar o que está faltando. Saber, ao ver a imagem da capa, como ela será. E aprofundar-se no conteúdo que será realçado pela forma que o livro vai tomando. Ver um livro em construção é uma experiência única, em que nenhuma etapa se adivinha: ela se revela. E essa revelação é que traz a satisfação de se fazer um livro. Conhecer cada etapa como ela aconteceu, os acasos que fizeram o livro, os erros, as omissões e os acertos. A revisão em busca da correção gramatical. A montagem do texto nas páginas. O livro como ele será lido. Descrever o futuro a partir do presente. O livro é permanente. Nós, não. Mas nosso trabalho fica, vinga. E dá frutos. Nem que seja daqui a 50 ou 500 anos.

7/03/2015 - 3h47 


quinta-feira, 5 de março de 2015

O que os livros nos ensinam

Há autores com que me dou extremamente bem. Há outros, no entanto, que, não sei se por raiva ou inveja, inventam mil trapalhadas para tornar o relacionamento impossível. A relação autor-editor é muito complexa e complicada. Acho que pesa o fato de sabermos fazer algo que ele não faria sozinho, e isso causa alguma frustração. Se o autor não confiar 100% no editor, este não deverá fazer o livro do outro. Edição é uma questão de confiança. Ou se confia, ou não se confia. Confiar em parte não é confiar. Sempre procuro a melhor solução para um livro, como se fosse meu, e depois entrego-o pronto ao seu autor. Não preciso me apoderar de um livro que não é meu. Eu tenho meus próprios livros. E não precisaria editar mais ninguém. 
Nunca se sabe o que vai na cabeça de um autor durante toda a preparação de um livro, mas sei que ele passa por muitos medos e quase consigo adivinhá-los, ou antever um problema, e tento atalhá-los a tempo. Mas há problemas incontornáveis, quando não se tem respeito pelo trabalho do editor, ou este é depreciado por o autor considerar sua obra maior do que o trabalho do editor. Nenhum é maior do que o outro, eles são complementares, pois sem um, o outro não existiria. Sem o autor, o editor não teria o que fazer, e sem o editor, o autor não teria livro. A não ser que se torne seu próprio editor. O que é muito justo e válido. Mas atacar o editor por achar que este irá se locupletar do livro alheio é uma sandice. 
Não há ganho ao se fazer livros. Ao contrário, temos de investir um tempo insano para fazer algo que não nos pertence. E o único trunfo é ter feito. Principalmente pequenas tiragens de livros inéditos de novos autores. O que se ganha é ínfimo perto do préstimo que é elaborar o livro. O menor ganho que seja será para pagar custos, e não há nada que possa ser feito inteiramente de graça. Assim a satisfação de um editor está em ter realizado o trabalho, e ver o autor satisfeito. Isso não tem preço. Nenhum dinheiro paga essa realização. Mas ao autor ingrato, eu reservo o meu desprezo. Pois sua húbris é maior do que sua obra. E nada poderá fazê-lo entender que ele não teria feito nada sozinho, a não ser que o fizesse. E não poderá tirar o meu mérito por tê-lo feito. 

Fazer livros é uma troca. De conteúdo pela forma. A ideia ganha corpo. Torna-se um objeto, ganha vida, materializa-se. Essa materialização tem um preço. Às vezes, é uma amizade. Outras vezes, é um contentamento.

5/03/2015 - 20h00

Foto de Pedro Drummond, Café Apetite.



domingo, 3 de novembro de 2013

50 anos da morte de Camus



 Certos fatos, por vezes, passam despercebidos, e este quase me escapou, não fosse a minha famigerada mania de fazer coisas impulsivamente e, de repente, constatar que fiz algo importante, sem saber.

No dia 4 de janeiro, comprei O Estrangeiro, de Camus, que já tinha lido em inglês e que encomendara na Livraria da Travessa, para uma pesquisa que pretendo fazer, eis senão quando, li hoje em O Globo, na crônica do Dapieve, sobre a vinda de Camus ao Brasil em 1949, esta ser a data da morte de Camus, num acidente de carro, em 1960, na França.

Rewind. Há alguns anos, encontrei no sebo Luzes da Cidade, em Botafogo, um livro de fotos de Camus, numa edição especial, que se “dava” ao cliente que comprasse um livro da coleção Pléiade, porém, este volume estava sendo vendido a R$ 50,00 e eu, sem titubear, comprei-o imediatamente, sem nem saber por que estava fazendo isso.

Passados poucos anos, enquanto editava um livro que mesclava vários trechos de história contemporânea, a morte de Camus foi mencionada num texto retirado de uma página da internet, em que dizia que o escritor francês havia morrido num “acidente viário”. Ponto de interrogação. Eu que, até então, desconhecia a causa mortis do meu dileto Camus (antes mesmo de saber por que tão dileto), corrigi: “acidente aéreo”, considerando “viário” como se fosse de “aviação”. Confusão minha.

Dormi e acordei no dia seguinte sozinha em casa e, na hora de tomar o café da manhã, peguei da estante o tal livro de fotos de Camus que havia comprado no sebo, para olhá-lo pela primeira vez e, ao folheá-lo, deparei-me com a foto do carro em que viajava Camus estraçalhado contra uma árvore. Aí compreendi tudo: o “viário” era de “viação”, o texto provavelmente havia sido escrito em Portugal e meu autor havia copiado aquele texto sem corrigir, restando a mim, pobre editora, entender mais de Camus do que entendia.

Isso só para mostrar que, quando se edita um livro, os assuntos saltam à nossa frente, e não é a primeira vez nem a segunda que isso acontece. Isso ocorre sempre. Toda vez que lidamos com um assunto num livro, as palavras e temas acorrem inesperadamente, seja em outro livro, num artigo de jornal ou entrevista de televisão. É impressionante.

Aprendi sobre Camus por Camus mesmo, e agora aconteceu novamente. Ele veio ao meu encontro nos 50 anos de sua morte, sem que eu o soubesse, carregando o único livro que li dele, nessa homenagem póstuma, ele que recebeu o Nobel no ano em que nasci, em 1957. E o fascínio por este James Dean intelectual, como o chamou Dapieve, este pied noir existencialista, continua desenfreado. Até eu entender por que ele me chama para ouvi-lo, e eu o atendo.

O exemplar de O Estrangeiro, que li em inglês, encontrei na deliciosa biblioteca de meu amigo Pedro Lage, que tem livros que só vi ali e ele gentilmente me empresta, sabendo que irei devolvê-los (como fiz). Achei o texto inebriante.

Mesmo não tendo lido mais nada de Camus até hoje, sei que haverá um momento para lê-lo. O livro espera.



Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 2010 – 9h00


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A maratona do livro

Quem quer fazer livros não sabe no que vai se meter. Além de passar pelo processo de edição, que é extenuante, o (novo) autor tem que aprender os caminhos que o livro terá de percorrer para chegar às mãos do leitor.

As perguntas são as mesmas: "Sou eu que vou vender na livraria?" "Com quem ficam os livros?" "Qual o preço de capa?" "Quanto eu recebo em cada livro?"

Fazer conta não é o problema, a questão é administrar o vaivém dos exemplares, as entradas e saídas, as notas fiscais de consignação, acerto e venda e ainda fazer a prestação de contas de cada título vendido.

Estamos às vésperas de mais uma Primavera dos Livros neste final de outubro, e temos de contar todo o estoque para saber o que vai ser levado, quantos têm de cada um, quantos exemplares levar de cada título, e torcer para que não chova e vendamos bastante para compensar o "esforço de reportagem".

Vender livro não é fácil, porque não é artigo de primeira necessidade, principalmente para quem vende poesia, menos primeira necessidade ainda para quem não pensa nisso, mas, no dia a dia, a poesia é praticamente indispensável. Mas só para quem faz uso dela. Quem não faz, nunca vai descobrir os benefícios que ela traz.

Mas voltemos à venda dos livros: o livro percorre um circuito que poucas, muito poucas pessoas sabem como é e quanto custa. Quando explico para meus autores por onde seu livro vai passar e quanto será descontado do preço de capa, arregalam os olhos e dizem: "Não sabia que era tão caro".

Sim, é caro, livro é quase um artigo de luxo, por isso que tantos ganham dinheiro com ele, mas não necessariamente quem escreve e edita, esses estão numa das pontas e pagam para o livro circular. A gente paga para vender e, como diz minha amiga e editora Flávia Iriarte, se der para pagar as contas no final do mês, ficamos contentes.

Livro não é para principiantes. O mercado editorial é para profissionais. E quem quiser entrar na roda, vai ter de girar um bocado para fazer seus livros chegarem a algum lugar mesmo com a ajuda dos canais de venda. O importante é divulgar. E ter um bom livro para vender. O resto o tempo cuida.

15/10/2013 - 1h48

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Conversando com um revisor


Revisão é muito mais difícil do que você imagina. Faço isso há 33 anos. E ainda pego erros de cabo de esquadra. Ontem nesse texto que lhe mandei tinha: “espíritos invisíveis”. Você conhece algum que seja visível? Se for, ele se materializou, então deixou de ser espírito. Os erros também são dessa ordem. Não basta corrigir a gramática, tem que ter o entendimento do texto. 

Outro erro que peguei de tradução: “homem morto”. Ora, um homem morto é um defunto. Por mais que seja uma tradução literal, ela não é correta, porque ninguém se refere a alguém que morreu como “homem morto”. Quando eu digo que isso não é português, brigam comigo. As palavras estão em português, mas a expressão, não. 


Então, o outro problema é falta de vocabulário, seja para autores, revisores ou tradutores. E falta de cultura da língua. Aí ligam o chutômetro. Como editora, eu puxo a orelha de todos eles. Havia outra expressão que dizia “voava no ar”. Você já viu alguém voar em outro lugar? Basta dizer “voar” que está no ar. E por aí vai...

A função do editor é justamente essa: descobrir onde o autor, revisor e tradutor erraram. Além de autora, eu sou a editora que corrige, então sou obrigada a corrigir a mim mesma. Quando olho o texto que escrevi, tenho que ter a isenção necessária para criticar o meu próprio texto, algo que só ao me tornar editora consegui fazer. Como autora, eu erro, mas como editora, não posso errar.

27/09/2013 - 15h15